quinta-feira, outubro 12, 2006

A mulher de César

O pai extremoso, patrício romano, chamou-lhe Publius Claudius Pulcher, que é como quem diz Públio Cláudio Jeitoso, em bom vernáculo. Se era de facto jeitoso ou não, não faço ideia. Diz que sim, mas eu, francamente, não estou interessado, até porque necrofilia foi maleita que ainda não me atacou. Ora o menino Jeitoso, apesar de boas famílias, decidiu fazer carreira política tomando o partido do povo. Vai daí troca o aristocrático nome Claudius pela forma popularucha Clodius - é que os romanos educados pronunciavam Claudius como "kláudiuss", mas a populaça dizia "klódiuss". O rapaz teve algum sucesso na vida pública, conseguindo até fazer exilar o poderoso Marcus Tullius Cicero (que é como quem diz Marco Túlio Grão-de-Bico), quando foi tribuno (o Clódio Jeitoso, não o Cícero Grão-de-Bico).

Mas o Clódio Jeitoso teve também assinalável êxito na vida privada. Com efeito, em 62 a.C., tinha o rapaz cerca de 30 anos (idade mais do que própria para ter juízo), toca de despir a toga e enfiar um vestido de mulher. Não, não ia ao Finalmente lá do sítio: ia à casa de Júlio César, onde a sua mulher (a de César, não a do Clódio Jeitoso) celebrava os ritos secretos da Bona Dea com o mulherio amigo. Esses rituais, como toda a gente sabe, eram interditos aos homens. Não, o Clódio Jeitoso não queria saber como eram esses ritos, e não consta que tivesse fantasias transformistas - embora, à moda da época, provasse dos dois pratos. Bom, então que fazia o Clódio Jeitoso vestido de mulher em casa de Júlio César? E recordo: não havia nenhuma festa travesti em casa de César, apesar de serem públicas as tendências efeminadas do grande conquistador da Gália. Então mas o homem não era casado?, perguntar-me-ão. Era, mas desde quando isso quer dizer alguma coisa? Esse mestre da coscuvilhice que foi Suetónio diz dele que era "uir omnium mulierum mulierque omnium uirorum" (cito de cor), que é como quem diz "homem de todas as mulheres, mulher de todos os homens".

Mas regressemos ao Clódio Jeitoso, do César falaremos noutra ocasião. Contava eu que o Jeitoso pôs uns trapinhos de mulher e foi naquela figura para a casa de Júlio César, onde a mulher deste celebrava os ritos secretos da Bona Dea, que eram só para o mulherio - a presença de homens era proibida. Mas o Clódio lá conseguiu entrar, possivelmente com as roupinhas da mana Clódia, uma das maiores cabras que Roma conheceu, a quem, segundo as más línguas, nem o próprio irmão escapou. Conseguiu, portanto, entar, diz-se que com a ajudinha da escrava da mulher de César, mas uma vez lá dentro foi rapidamente desmascarado. Consta que a escrava da Aurélia, a mãe de César (a Aurélia, não a escrava), lhe pediu para dançar, e perante as negativas do Clódio Jeitoso Traveca, a moça insistiu, até que descobriu que era um homem que tinha à frente. Talvez o Jeitoso se tenha esquecido de fazer a depilação, ou lhe tenha caído a peruca, ou tenha tido um súbito e revelador entusiasmo, não sei.

Foi uma escandaleira das antigas, não só porque era um sacrilégio, mas sobretudo porque ao que parece o Clódio Jeitoso ia com a intenção de seduzir uma tal de Pompeia. E quem era esta rapariga? Era, nem mais nem menos, a famosa mulher de César, a tal a quem não basta ser honesta. É que César, apesar de não ter testemunhado contra o Jeitoso em tribunal pelo sacrilégio e pelo atentado ao pudor da Pompeia, disse à mulher "Filha, a porta da rua é serventia da casa", que é como quem diz "Mulher, arruma lá os teus tarecos e põe-te no olho da rua, que eu já tenho problemas que me cheguem, era só o que me faltava agora ter fama de cornudo".

Conta-se que quando lhe disseram que o repúdio da mulher e a recusa em testemunhar contra o Jeitoso equivalia a admitir que ela andava mesmo enrolada com o dito cujo, César respondeu que não, que acreditava piamente na inocência da ex-mulher, mas que apesar de acreditar piamente na inocência da Pompeia, preferiria que sobre ela não recaísse qualquer suspeita. Que é como quem diz "à mulher de César não basta ser honesta: tem de parecê-lo".

A que propósito vem esta fofoca com mais de 2000 anos? É que o senhor José Luís Oliveira, presidente do Gondomar e arguido do "Apito Dourado", afirmou que as prendinhas dadas aos árbitros estavam abaixo dos valores máximos admitidos pela UEFA. Ficamos portanto a saber que se podem dar prendinhas aos árbitros, desde que sejam de valor inferior a 200 francos suíços. E é aqui que entra a pobre Pompeia, ex-mulher de César. A árbitros e dirigentes não basta serem honestos, têm de parecê-lo. É como se eu recebesse prendinhas dos meus alunos em véspera de exame. Não há lei nenhuma que me proíba de aceitar, sei lá, uma garrafita de vinho do bom, ou um relógio, ou cordão de ouro, uma roupita cara, eu sei lá, uma televisão tipo ecran de cinema... Não há lei que me proíba de aceitar, mas eu, educado com valores de honra e moral, nunca os aceitaria, ainda que a intenção do aluno fosse apenas prestar-me homenagem inocente. Porquê? A mim não me basta ser honesto: tenho também de parecê-lo.

Sem comentários: