sexta-feira, julho 04, 2008

Nacionalismos

A notícia já não é nova, mas recordê-mo-la: a UEFA, através do seu comité técnico, colocou Pepe e Bosingwa na equipa ideal do Euro'08. Portanto, dois jogadores nacionalizados, um brasileiro, o outro congolês.

A questão das nacionalizações (eufemisticamente designadas "naturalizações") tem sido levantada por diversas entidades, e o samba que soou este Verão na Áustria e na Suíça em nada ajudou a sanar as divergências. Quanto a mim, vacinado há muito contra a praga do nacionalismo e indiferente ao patrioteirismo futeboleiro, confesso que não me aquece nem me arrefece. Para mim patriotismo é pagar os impostos a tempo e horas, não alinhar em esquemas "sem factura é mais barato", escrever sem erros, não deitar lixo no chão, cumprir o código da estrada, e outras coisas importantes. Pôr arremedos de bandeiras made (badly) in China à janela e apoiar um grupo de marmanjos só "porque sim" não está na minha lista de comportamentos patrióticos. De resto, eu sou como o Guardiola, que dizia "la meva selecció és el Barça" (pardon my catalan). A minha é o Sporting.

Sou, portanto, indiferente a patrioteirismos futeboleiros. Por mim ponham lá as bandeirinhas à janela à vontade. Eu se pusesse era a do Sporting. Mas não ponho. Já não sou indiferente, porém, a alguma dualidade de critérios que se tem verificado na generalidade da opinião pública portuguesa, quando se trata de admitir ou não admitir jogadores nacionalizados nas diversas selecções portuguesas. Para não ir muito mais longe, até porque hoje exagerei um pouco no ginásio, recordo a histeria à volta da selecção de râguebi, porque houve uns rapazes com excesso de peso que choraram a cantar o hino nacional. Alcandorados todos a heróis nacionais - todos, incluindo os argentinos nacionalizados e mais uns rapazes de nomes impronunciáveis, de sonoridade eslava, que por lá andavam entre os "lobos" (quando eu pensava que eram só as selecções africanas que tinham alcunhas...). Não sei se choraram a cantar o hino, mas o povão não se chateou nada, e ala que se faz tarde, são todos uns patriotas de primeira água.

É que para o português comum parece que a coisa funciona mais ou menos assim: se forem brasileiros nacionalizados, cai o Carmo e a Trindade (ou o que resta de 1755), e é a honra da nação que sai ultrajada. Se forem argentinos (os tais do râguebi), congoloses, nigerianos, eslavos, então não se passa nada, está tudo bem. Para não nos dispersarmos pelas diferentes selecções, onde abundam, perante a indiferença geral (e ainda bem), os nacionalizados dos 4 cantos do mundo, concentremo-nos na selecção de futebol. Foi generalizada a indignação, sobretudo de benfiquistas, por causa da nacionalização e convocatória do Deco. Mas não ouvi um único queixume a propósito do Makukula, congolês de Kinshasa. Sim, esse mesmo que não há muitos anos afirmou publicamente que recusava representar a selecção portuguesa, pois queria a congolesa (para a qual de resto não chegou a ser convocado). Esse mesmo que veio depois fazer um tremendo teatro, quando convocado pelo sr. Scolari, chorando lágrimas de crocodilo, alegando que a convocatória era um sonho. Um sonho? O sonho dele era que o pessoal tivesse memória curta. Mas eu não tenho. Infelizmente parece que, sobretudo para os lados do CC Colombo, a memória é coisa que vai falhando com cada vez maior frequência.

Para quê trazer o Makukula à colação, e não outros ilustres nacionalizados não brasileiros, como o Bonsingwa, o Nani ou o Nélson (o lampião), só para referir alguns já dos tempos do sr. Scolari? Porque uma das alegações contra as convocatórias dos nacionalizados brasileiros é a de que alegadamente só se tornaram portugueses por interesse, para lançarem as suas carreiras, e porque no Brasil não tinham hipóteses. Além de ser muito complicado provar tais alegações, e de eu ter seriíssimas dúvidas sobre se o Deco ou o Pepe se sentem menos portugueses do que eu (menos é complicado, de facto), pode-se sempre contra-argumentar com este caso Makukula, exemplo provado e acabado de alguém que só integra a selecção portuguesa, depois de a ter previamente recusado, após ver que não se safava na do Congo. Mas parece que com ele está tudo bem. Não é brasileiro, não há problema.

Além disso, também podemos perguntar-nos quantos jogadores estão ou estiveram na selecção com intenções puramente patriotas. O Figo, que recusou integrar a selecção quando estava na crista da onda em Madrid, alegando que tinha de dar prioridade ao clube que lhe pagava (ao menos foi sincero), e que, quando foi para o banco do Bernabéu e percebeu que tinha de mudar de ares depressa, veio fazer olhinhos aos srs. Scolari e Madail, e, dando o dito por não dito, ainda fez mais meia dúzia de jogos? Isto já sem falar das recorrentes discussões sobre prémios de jogo, dignas de selecções do 3º mundo, e de casos como o lamentável "Saltillo", em que um grupo de patriotas ameaçou fazer greve durante o Mundial'86, e acabou mesmo por se recusar a jogar a quase totalidade da qualificação para o Euro'88, para gáudio das restantes selecções do grupo, que defrontaram um grupo de 2ªs e 3ªs escolhas, que em circunstâncias normais não seriam convocados nem pelo sr. Scolari. É este o amor à camisola que dizem que só os de sangue puro lusitano (seja lá o que isso for) podem sentir? Eu por mim não tenho a mais pequena sombra de dúvida: o Pepe e o Bosingwa são muito mais portugueses do que eu. O Deco não sei nem me interessa, o Makukula já se viu que é de quem o convocar.

Podia ainda tentar contrariar alguns argumentos mais divertidos, como o de que "não deve haver jogadores com sotaque", mas basta ouvir o português sofrido do Bosingwa ou o impenetrável açoriano do Pauleta para o argumento cair por terra sem ser preciso grandes abanões.

Portanto, e como praticamente ninguém se indignou com a chamada dos nacionalizados Bosingwa e Makukula (e ainda bem), resta-me concluir que de facto o que há é má vontade contra os brasileiros. Que o assumam, portanto, e não se escondam atrás do argumento do nacionalismo ou patriotismo.

Repito: nacionalismos a mim não me convencem, e a História tem mostrado, desde que foram inventados algures no século XIX (*), que daí, como de Espanha, nem bom vento nem bom casamento. Além disso, se o propósito é representar a nação (qual?), então não faz muito mais sentido que se represente o país tal como ele é, de facto, uma mistura de portugueses, brasileiros, africanos, eslavos, asiáticos? Isto dando de barato que uma selecção de futebol representa um país, o que me parece redutor e lamentável.

Diz que é para comentar a não inclusão do Ronaldo na equipa ideal do Euro'08? Então mas a ideia não é precisamente pôr lá os jogadores que mais se destacaram? Então o que é que o Ronaldo ia lá fazer? Mostrar os seus horrendos peitorais hipertrofiados?



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(*) Antes disso valiam sobretudo as fidelidades a uma casa real, não a um país. Isso explica, por exemplo, que a nobreza portuguesa tenha ficado praticamente toda do lado de Filipe IV, em 1640, quando, aproveitando-se da revolta da Catalunha e da Guerra dos 30 Anos, a coroa portuguesa foi restaurada, na cabeça de D. João IV (Filipe IV, na perspectiva de perder a Catalunha ou Portugal, preferiu garantir a Catalunha, e só anos depois, quando o exército português já tinha tido tempo de se reorganizar, decidiu vir aqui para estes lados, ainda fragilizado da Guerra dos 30 anos, e depois de esmagada a revolta catalã). Ou que na célebre batalha de Aljubarrota houvesse quase tantos portugueses do lado castelhano como do anglo-português, e que parte muito significativa da nobreza portuguesa tenha ficado, de novo, do lado castelhano. Mas isso são contas de outro rosário. Aqui é mais bola.

[publicado originalmente no Facciosos]

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